domingo, 25 de setembro de 2011

A menininha dos fósforos - Clarissa Pinkola Estés

Publico um aperitivo do livro mulheres que correm com os lobos de Clarissa Pinkola Estés.


A publicação abaixo é a junção de uma sinopse encontrada no site da editora Rocco, o conto e a análise da autora. 
Discuti em um grupo de estudos que participo, vários trechos (contos e análises) deste livro. O que mais me chamou atenção foi o da menininha.
O conto me fez repensar inclusive alguns posicionamentos meus quanto aos mendigos.
Quem tiver interesse em ler o livro na íntegra pode encontrá-lo no Google em forma de PDF.


Boa leitura e reflexão.
Saudações cordiais,
O Estudante.


Sinopse:
Os lobos foram pintados com um pincel negro nos contos de fada e até hoje assustam meninas indefesas. Mas nem sempre eles foram vistos como criaturas terríveis e violentas. Na Grécia antiga e em Roma, o animal era o consorte de Artemis, a caçadora, e carinhosamente amamentava os heróis. A analista junguiana Clarissa Pinkola Estés acredita que na nossa sociedade as mulheres vêm sendo tratadas de uma forma semelhante. Ao investigar o esmagamento da natureza instintiva feminina, Clarissa descobriu a chave da sensação de impotência da mulher moderna. Seu livro,Mulheres que correm com os lobos, ficou durante um ano na lista de mais vendidos nos Estados Unidos.
Abordando 19 mitos, lendas e contos de fada, como a história do patinho feio e do Barba-Azul, Estés mostra como a natureza instintiva da mulher foi sendo domesticada ao longo dos tempos, num processo que punia todas aquelas que se rebelavam. Segundo a analista, a exemplo das florestas virgens e dos animais silvestres, os instintos foram devastados e os ciclos naturais femininos transformados à força em ritmos artificiais para agradar aos outros. Mas sua energia vital, segundo ela, pode ser restaurada por escavações "psíquico-arqueológicas" nas ruínas do mundo subterrâneo. Até o ponto em que, emergindo das grossas camadas de condicionamento cultural, apareça a corajosa loba que vive em cada mulher.






A concentração e o moinho da fantasia 

Na América do Norte, o conto intitulado "A menininha dos fósforos" é mais conhecido na versão de Hans Christian Andersen. Ele descreve as conseqüências da falta de alimento e da falta de concentração. Trata-se de uma história muito antiga, contada pelo mundo afora, em versões diferentes. Às vezes ela fala de um carvoeiro que usa seus últimos carvões para se aquecer enquanto sonha com tempos passados. 
Em algumas versões, o símbolo dos fósforos é transformado em algum outro objeto, como na história do pequeno florista, que descreve um homem magoado que contempla fixamente o centro das suas últimas flores até desaparecer para sempre. Embora haja quem dê uma interpretação superficial a essas histórias e declare que não passam de histórias piegas, querendo dizer que elas têm excessivo apelo emocional, seria um erro ignorá-las sem lhes dedicar maior atenção. Em sua essência, esses contos são profundas expressões da psique, a qual pode vir a ser hipnotizada negativamente a um tal ponto que a vida real e vibrante começa a "morrer" em espírito.
A primeira vez que ouvi essa versão de '’A menininha dos fósforos" foi da minha tia Katerina, que veio para os Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial. Durante a guerra, sua humilde aldeia de lavradores da Hungria havia sido dominada e ocupada por três nações hostis. Ela sempre começava a história dizendo que sonhos agradáveis sob circunstâncias difíceis não fazem bem; que nos tempos árduos precisamos ter sonhos fortes, reais, sonhos que possam se realizar se trabalharmos com afinco e bebermos nosso leite à saúde da Virgem. 


 


A menininha dos fósforos 

Era uma vez uma menininha que não tinha nem pai nem mãe e que morava na floresta negra. Havia nas proximidades da floresta uma aldeia, e ela havia aprendido que podia comprar lá fósforos por meio pêni que podiam ser vendidos na rua por um pêni inteiro.  Se ela vendesse fósforos em quantidade suficiente, poderia comprar uma fatia de pão, voltar para sua meia-água na floresta e ali dormir com as únicas roupas que possuía. 
Chegou o vento, e ficou muito frio. Ela não tinha sapatos, e seu casaco era tão fino que chegava a ser transparente. Seus pés há muito haviam passado do ponto de estar azuis de frio. Seus dedos dos pés estavam brancos, assim como os dedos das mãos e a ponta do nariz. Ela perambulava pelas ruas, implorando a desconhecidos que comprassem fósforos dela. Mas ninguém parava e ninguém prestava a mínima atenção a ela. 
Por isso, uma noite ela se sentou dizendo para si mesma que tinha fósforos e que podia acender uma fogueira para se aquecer. Só que ela não tinha nem gravetos nem lenha. Resolveu acender os fósforos assim mesmo. 
Ela se sentou com as pernas esticadas para a frente e acendeu o primeiro fósforo. Ao fazê-lo, pareceu-lhe que o frio e a neve desapareciam por completo. O que ela viu no lugar da neve rodopiante foi uma sala, uma linda sala com um enorme fogão de cerâmica verde-escuro, com uma porta de ferro trabalhado em arabescos. 
Tanto calor emanava do fogão que o ar chegava a ondular. Ela se aconchegou junto a ele e se sentiu no paraíso. De repente, porém, o fogão se apagou, e ela estava mais  uma vez sentada na neve, tremendo tanto que os ossos do seu rosto retiniam. E assim ela acendeu o segundo fósforo. A luz iluminou a parede do edifício ao lado de onde ela estava sentada, e ela subitamente pôde ver através da parede. Na sala  por trás da parede, havia uma toalha alvíssima sobre a mesa, e ali na mesa havia porcelana do branco mais branco. Numa  travessa, um ganso, que acabava de ser preparado. E, exatamente quando ela esticou a mão para alcançar o banquete, a miragem desapareceu.
Ela estava novamente na neve, mas agora seus joelhos e quadris não doíam mais. Agora o frio abria caminho pelo seu torso e pêlos braços com formigamentos e ardências, e por isso ela acendeu o terceiro fósforo. E na chama do terceiro fósforo havia uma linda árvore de Natal, com uma belíssima decoração de velas brancas, babados de renda e maravilhosos enfeites de vidro, além de milhares e milhares de pequenos pontos de luz que ela não conseguia discernir direito.  
Ela olhou para o alto dessa árvore enorme que crescia  cada vez mais e avançava cada vez mais na direção do teto até que se transformou nas estrelas do céu lá em cima. Uma estrela atravessou brilhante o céu, e ela se lembrou de suai mãe lhe ter dito que, quando morre uma alma, uma estrelai cai.         
E do nada surgiu sua avó, tão carinhosa e delicada, e ai menina se sentiu feliz ao vê-la. A avó levantou o avental, envolveu nele a criança, abraçou-a bem apertado, e a menina sei sentiu contente. 
Mas a avó também começou a desaparecer. A menina acendia cada vez  mais fósforos para manter a avó consigo... cada vez mais fósforos para mantê-la consigo... cada vez mais... e elas começaram a subir juntas para o céu, onde não havia nem frio, nem fome, nem dor. E pela manhã, entre as casas, encontraram a menina imóvel e morta.


============================ 

Afugentando a fantasia criativa 

Essa criança está num ambiente em que as pessoas não se importam com ela. 
Se você está num ambiente desses, saia daí. Essa criança está num meio no qual o que ela tem, foguinhos em palitos  — o início de toda possibilidade criativa  — não é valorizado. Se você estiver numa aflição semelhante, vire as costas e vá embora. Essa criança está numa situação psíquica na qual há poucas opções. Ela se resignou ao seu "lugar" na vida. Se isso aconteceu com você, pare de se resignar e saia. 
O que a menina dos fósforos deve fazer? Se os seus instintos estivessem intactos, suas opções seriam inúmeras. Caminhe até uma outra cidade, esconda-se numa carroça, abrigue-se num depósito de carvão. A Mulher Selvagem saberia o que fazer em seguida, mas a menina dos fósforos não conhece mais a Mulher Selvagem. A pequena criança selvagem está morrendo de frio; tudo o que resta dela é uma pessoa que se movimenta como se em transe. 
Estar com pessoas reais que nos aqueçam, que apóiem e elogiem nossa criatividade, é essencial para a corrente da vida criativa. Do contrário, acabamos congeladas. O ambiente propício é um coro de vozes tanto interiores quanto exteriores que observa o estado do ser da mulher, tem o cuidado de incentivá-lo e, se necessário, também a conforta. Não tenho certeza do número de amigos de que precisamos, mas decididamente um ou dois que considerem o seu talento, qualquer que ele seja,  pan de cielo, o pão dos céus. Toda mulher tem direito a um coro de elogios. 
Quando as mulheres estão ao relento, no frio, elas costumam viver de fantasias em vez de ação. Fantasias desse tipo são o grande anestésico. Conheço mulheres dotadas de vozes maravilhosas. Conheço mulheres contadoras inatas de histórias. 
Quase tudo que lhes sai da boca é de improviso e bem elaborado. No entanto, elas se sentem isoladas ou de algum modo destituídas dos seus direitos. Elas são tímidas, o que muitas vezes é um disfarce para um animus esfaimado. Elas têm dificuldade para perceber que recebem apoio de dentro, de amigos, da família ou da comunidade. 
Para evitar o destino da menininha dos fósforos, há um importante passo que você deve dar. Qualquer um que não apoie sua arte, sua vida, não é digno do seu tempo. É duro mas é verdade. Se não pensarmos assim, adotamos direto os trapos da menina dos fósforos e somos forçadas a viver uma; fração de vida que mata pelo frio todo pensamento, toda esperança, talentos, escritos, alegrias, projetos e danças. 
O calor deveria ser o principal alvo da menininha dos fósforos. Na história, porém, ele não é. Pelo contrário, ela tenta vender os fósforos, suas fontes de calor. 
Essa atitude não deixa o feminino nem um pouco mais quente, rico ou sábio, e impede seu desenvolvimento futuro. 
O calor é um mistério. Ele de certo modo nos cura e nos gera. Ele é quem solta o que está preso demais, propicia o movimento livre, o misterioso impulso de ser, o primeiro voo das ideias novas. Não importa o que o calor seja, ele aproxima as pessoas cada vez mais. 
A menina dos fósforos não está num ambiente em que possa se desenvolver. 
Não há calor, não há gravetos, não há lenha. Se estivéssemos no seu lugar, o que poderíamos fazer? Para começar, poderíamos não acalentar a terra de fantasia que a menina cria ao acender os fósforos. Existem três tipos de fantasias. O primeiro é a fantasia do prazer: uma espécie de sorvete mental, exclusivamente destinada à fruição, como quando sonhamos de olhos abertos. O segundo tipo de fantasia é a formação intencional de imagens. Essa fantasia é  como uma sensação de planejamento. Ela é usada como veículo para nos levar a agir. Todos os sucessos  — psicológicos, espirituais, financeiros e criativos  — começam com fantasias dessa natureza. E existe ainda o terceiro tipo, aquela fantasia que paralisa tudo. É o tipo de fantasia que impede a ação adequada nos momentos críticos. 
Infelizmente, é essa a fantasia criada pela menina dos fósforos. É uma fantasia que não tem nada a ver com a realidade. Ela está relacionada, sim, à sensação de que não há nada a ser feito mesmo e que não faz diferença se mergulhamos numa fantasia vã. Às vezes, essa fantasia está na mente da mulher. Às vezes, ela lhe chega numa garrafa de bebida, numa seringa, ou na falta dessas coisas. Às vezes, a fumaça de um alucinógeno é o meio  de transporte; ou ainda muitos quartos descartáveis, mobiliados com uma cama e um desconhecido. As mulheres nessas situações estão representando a menininha dos fósforos em cada noite de fantasias e de mais fantasias, acordando congeladas e inertes a cada  amanhecer. Existem muitas formas de perder o rumo, de perder nosso foco de atenção. 
E o que poderá reverter essa situação e restaurar a auto-estima e o amor-próprio? Temos de descobrir algo muito diferente do que o que a menina dos fósforos tinha. Precisamos levar nossas idéias para um lugar onde elas encontrem apoio. Esse é um passo enorme concomitante com a volta ao foco de atenção: encontrar um lugar propício. Pouquíssimas mulheres têm condição de criar apenas com o próprio gás. 
Precisamos de todos os estímulos que pudermos encontrar. 
A maior parte do tempo as pessoas têm idéias fantásticas. Vou pintar aquela parede de uma cor que eu aprecie; vou bolar um projeto com o qual toda a cidade se envolva; vou fazer uns azulejos para meu banheiro e, se eu realmente gostar deles, vou vender alguns; vou voltar a estudar; vou vender a casa para viajar, vou ter um filho, deixar isso e começar aquilo, seguir o meu caminho, me organizar, ajudar a corrigir essa ou aquela injustiça, proteger os desassistidos. 
Esses tipos de projeto precisam ser acalentados e alimentados. Eles precisam de apoio vital  — de pessoas  carinhosas. A menininha dos fósforos está aos frangalhos. Como diz a velha canção folclórica, esteve por baixo tanto tempo que até lhe parece que está por cima. Nada pode vicejar nesse nível. Queremos nos colocar em situações nas quais, como as plantas e as árvores, possamos nos voltar para o sol. 
Mas é preciso que haja um sol. Para conseguir isso temos de nos  mexer, não simplesmente ficar ali sentadas. Temos de fazer alguma coisa para tornar diferente nossa situação. Se não nos mexermos, estaremos de volta às ruas vendendo fósforos. 
Amigos que a amem e que tenham carinho pela sua vida criativa são os melhores sóis do mundo. Quando uma mulher, como a menininha dos fósforos, não tem nenhum amigo, ela também se sente congelada de angústia bem como, às vezes, de raiva. Mesmo que se tenha amigos, eles podem não ser sóis. Eles podem confortá-la em vez de mantê-la informada das suas circunstâncias cada vez mais gélidas. Eles a consolam  — mas isso é muito diferente do cuidado e carinho. O cuidado e o carinho levam a mulher de um lugar para outro. Eles são como cereais matinais psíquicos.  
A diferença entre o consolo e o cuidado e carinho é a seguinte: se você tem uma planta  que está doente porque vocês a mantém num armário escuro e você lhe diz palavras tranquilizadoras, isso é consolo. Se você tira a planta do armário e a põe ao sol, lhe dá algo para beber e depois conversa comi ela, isso é cuidado e carinho.                            
Uma mulher enregelada sem cuidado e sem carinho tem a propensão a se voltar para incessantes fantasias hipotéticas. No entanto, mesmo que ela esteja nessa condição de enregelamento,  especialmente se ela estiver numa situação dessas, ela deve recusar a fantasia consoladora. É que esse tipo de fantasia nos deixará mortas sem a menor dúvida. Você sabe como essas fantasias letais se apresentam, "Um dia 
quem sabe..."’’Se ao menos eu tivesse...", "Ele vai mudar..." e "Se eu só aprender a meu controlar... quando eu realmente estiver pronta, quando eu tiver XYZ suficiente, quando as crianças crescerem, quando eu me sentir mais segura, quando eu encontrar outra pessoa e logo que eu...", e assim por diante. 
A menininha dos fósforos tem uma avó interna que em vez de gritar com ela "Acorde! Levante-se! Não importa a que custo, descubra um lugar quente!", prefere levá-la para uma vida de fantasia, levá-la para o "céu". Mas o céu não vai ajudar a Mulher Selvagem, a criança selvagem acuada ou a menininha dos fósforos nessa situação. Essas fantasias consoladoras não devem ser detonadas. Elas são distrações sedutoras e letais que nos afastam do trabalho verdadeiro. 
Vemos a menina dos fósforos fazer uma espécie de permuta, um tipo de comércio maléfico, quando ela vende os fósforos, os únicos objetos que possui que poderiam aquecê-la Quando as mulheres estão desconectadas do amor benéfico da mãe selvagem, elas estão vivendo com o equivalente a uma dieta de subsistência no mundo exterior. O ego mal consegue se manter  vivo, recebendo o mínimo de 
alimento de fora e voltando a cada noite do ponto de onde começou, sem parar. Ali a menina adormece, exausta.  
Ela não pode despertar para uma vida com um futuro porque sua desgraça é como um gancho no qual ela se pendura todos os dias. Nas iniciações, passar algum tempo sob condições difíceis faz parte de uma separação forçada da acomodação e do conforto. Como transição iniciática, esse período tem seu término, e a mulher "recém-preparada" começa uma vida criativa e espiritual revitalizada e esclarecida. 
No entanto, poderia ser dito que as mulheres na situação da menininha dos fósforos foram envolvidas numa iniciação que deu errado. As condições hostis não servem para um aprofundamento, só para dizimar. É preciso que elas escolham um outro local, outro ambiente, com tipos diferentes de apoio e de orientação. 
Historicamente, e em especial na psicologia dos homens, a doença, o exílio e o sofrimento são muitas vezes compreendidos como uma separação iniciática, ocasionalmente com enorme significado. No entanto, para as mulheres, há outros arquétipos iniciáticos que têm origem na psicologia e no físico da mulher. Dar à luz é um deles; o poder do sangue é outro, assim como estar apaixonada ou ser objeto de um amor benéfico. Receber a bênção de alguém que ela admira, receber ensinamentos profundos e positivos de alguém mais velho do que ela: todas essas são iniciações intensas e que possuem suas próprias tensões e ressurreições. 
Seria possível dizer que a menina dos fósforos chegou muito perto e no entanto ficou longe demais do estágio transicional de movimento e de ação que teria completado sua iniciação. Embora ela possua os meios para uma experiência iniciática na sua vida miserável, não há ninguém nem dentro nem fora dela que oriente seu processo psíquico. 
Em termos psíquicos, no sentido mais negativo possível, o inverno traz o beijo da morte  — ou seja, uma frieza  — a tudo o que toca. A frieza representa o fim de um relacionamento. Se você quiser matar alguma coisa, basta agir com frieza. Assim que vemos congelados nosso sentimento, nosso pensamento ou nossa atividade, o relacionamento não é mais possível. Quando os seres humanos querem abandonar alguma coisa dentro de si mesmos ou pretendem dar um "gelo" em alguém, eles os ignoram, deixam de convidá-los, isolam-nos, fazem o maior esforço para não ter nem mesmo de ouvir sua voz ou pôr os olhos sobre eles. É essa a situação na psique da menina dos fósforos. 
A menina dos fósforos perambula pelas ruas e implora a desconhecidos que comprem fósforos dela. Essa cena mostra um dos aspectos mais desconcertantes quanto ao instinto ferido das mulheres, a entrega da luz por um preço baixo. As pequenas luzes nos palitos são semelhantes às luzes maiores às caveiras nas pontas das varas, na história de Vasalisa. Elas representam a sabedoria mas, o que é mais importante, elas acionam a conscientização, substituindo o escuro pela luz, recendendo o que acabou se apagando. O fogo é o principal símbolo da revivificação na psique. 
Temos aqui a menina dos fósforos em extrema necessidade de, mendigando, oferecendo na realidade algo de valor muito maior  — uma luz  — do que o valor recebido em troca  — um pêni. Quer esse "grande valor dado em troca de um valor menor" esteja dentro da nossa psique, quer ele seja vivenciado por nós no mundo objetivo, o resultado é o mesmo: maior perda de energia. Nessas circunstâncias, a mulher não consegue suprir suas próprias necessidades. Algo que quer viver implora pela vida, mas não obtém resposta. Temos, aqui, alguém que como Sofia, o espírito grego da sabedoria, tira a luz das profundezas, mas a revende em espasmos de fantasia inútil. Maus amantes, patrões execráveis, situações de exploração, complexos ardilosos de todos os tipos atraem a mulher para essas escolhas. 
Quando a menina dos fósforos resolve acender os fósforos, ela está usando seus recursos para fantasiar em vez de usá-los para agir. Ela queima sua energia de um modo quase que instantâneo. Isso aparece com evidência na vida da mulher. Ela está determinada a entrar para a faculdade, mas demora três anos para decidir qual prefere. Ela vai fazer aquela série de quadros mas, como não tem um lugar em que possa exibir o conjunto, não dá prioridade à pintura. Ela quer fazer isso ou aquilo, mas não reserva tempo para aprender, para desenvolver bem sua sensibilidade ou sua técnica. Ela tem dez cadernos cheios de sonhos, mas fica enredada no seu fascínio pela interpretação e não consegue pôr em ação seu significado. Ela sabe que deve sair, começar, parar, avançar, mas não faz nada disso. E assim compreendemos seus motivos. Quando a mulher tem seus sentimentos congelados, quando ela não consegue mais se sentir, quando seu sangue, sua paixão, não mais atingem as extremidades da sua psique, quando ela está desesperada; em todos esses casos, uma vida de fantasia é muito mais agradável do que qualquer outra coisa ao alcance dos seus olhos. A pequena chama dos seus fósforos, por não ter nenhuma lenha a queimar, acaba queimando sua psique com se ela fosse uma grande acha seca. A psique começa a se iludir. Ela agora vive no fogo de fantasia da satisfação de todos os anseios. Esse tipo de fantasia é como uma mentira. Se você a repetir com bastante freqüência, começará a acreditar nela. Esse tipo de angústia de conversão, na qual os problemas ou questões são minimizados com a entusiástica fantasia de soluções irrealizáveis ou de tempos melhores, não ataca apenas as mulheres; ele é o maior obstáculo enfrentado pela humanidade. O fogão na fantasia  da menina dos fósforos representa pensamentos calorosos. Ele é também um símbolo do centro, do coração, da lareira. Ele nos diz que sua fantasia está à procura do self verdadeiro, do coração da psique, do calor de um lar interno. 
De repente, porém, o fogão se apaga. A menina dos fósforos, como todas as mulheres nesse tipo de aflição psíquica, descobre que está novamente sentada na neve. Vemos aqui que esse tipo de fantasia é momentâneo e destrutivo. Ele não tem nada a queimar, a não ser nossa energia. Muito embora a mulher possa usar suas fantasias para se manter aquecida, ela mesmo assim acaba num frio profundo. 
A menina dos fósforos acende outros palitos. Cada fantasia se extingue, e a criança volta a congelar na neve. Quando a psique está gelada, a pessoa se volta para si mesma e para ninguém mais. Ela risca um terceiro fósforo. Ele é o número três dos contos de fadas, o número mágico, o ponto no qual algo de novo pode acontecer. Nesse caso, porém, como a fantasia supera a ação, nada de novo ocorre. 
É irônico que haja uma árvore de Natal na história. A árvore de Natal evoluiu de um símbolo pré-cristão da vida eterna—a árvore que mantinha suas folhas verdes mesmo no inverno. Seria possível dizer que isso era o que poderia salvá-la, a ideia da psique da alma  sempre verde, sempre crescendo, sempre em movimento. Mas o quarto não tem teto. A ideia da vida não pode ser contida na psique. A ilusão assumiu o comando. 
A avó é tão carinhosa, tão dedicada, e no entanto ela é a morfina final, o último trago de cicuta.  Ela atrai a criança Para o sono da morte. Em seu sentido mais negativo, esse é o sono da acomodação, o sono do entorpecimento  — "Tudo bem, dá para eu aguentar"; o sono da negação  — "Basta que eu olhe para o outro lado". Esse é o sono da fantasia maligna, no qual esperamos que todo sofrimento físico desapareça como que por mágica. Trata-se de um fato psíquico que, quando a libido ou a energia definha ao ponto de não mais se ver a respiração no espelho, a natureza da vida-morte-vida aparece, representada aqui  pela avó. É sua a tarefa de chegar no momento da morte de alguma coisa, de incubar a alma que deixou sua casca para trás e de cuidar dessa alma até que ela possa renascer. 
Essa é a bênção da psique de todo mundo. Mesmo diante de um final doloroso quanto o da menina dos fósforos, há um raio de luz. Quando se reúnem tempo, insatisfação e pressão suficientes, a Mulher Selvagem da psique lançará vida nova na mente da mulher, dando-lhe a oportunidade de agir em seu próprio interesse mais uma vez. Como podemos ver pelo sofrimento envolvido, é muito melhor curar nossa dependência da fantasia do que aguardar, com desejo e esperança, que sejamos ressuscitadas dos mortos. 




domingo, 11 de setembro de 2011

O que é Ideologia - Marilena Chauí



Tive a felicidade de ler este livro em uma excelente e oportuna complementação da matéria sociologia na faculdade.
Por falta de perícia e tempo, não tentarei resumir nem transmitir as ideias contidas no livro. Mas, como um adepto do século deleuziano ou "rizomático" forneço o link para que vocês se dediquem a esta leitura que na minha opinião é de grande valia.

Desejo a todos uma excelente formação como pessoas, independente da área profissional.

Saudações Cordiais,
O Estudante.